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A reforma e a impenhorabilidade de bens
A reforma do Judiciário tem origem na avaliação de que "é necessário aperfeiçoar o funcionamento do Poder Judiciário para que ele seja mais rápido, ágil e eficiente e para que a Justiça seja acessível à população brasileira."
A reforma do Judiciário tem origem na avaliação de que "é necessário aperfeiçoar o funcionamento do Poder Judiciário para que ele seja mais rápido, ágil e eficiente e para que a Justiça seja acessível à população brasileira." Desde então, diversas leis foram editadas com esse propósito. Especificamente no tocante à excussão de títulos judiciais, instituiu-se a multa no percentual de 10%, imposta nos casos em que o devedor não efetuar o pagamento espontâneo do débito, e formalizou-se a prática da penhora on-line.
Apesar do novo cenário potencialmente adverso aos devedores contumazes, verifica-se a utilização de expedientes que visam a retardar o pagamento de dívidas, impedindo a plena eficácia dos mecanismos criados. É nesse contexto que se constata a tentativa de alguns entes da administração indireta - sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações - de dificultarem o adimplemento de suas dívidas, sob a pseudo-justificativa de impenhorabilidade de seus bens e de sujeição das execuções ao regime dos precatórios. Como não poderia deixar de ser, essa tese tem sido rejeitada pelo Poder Judiciário.
A tese sustentada por tais entes baseia-se primordialmente na decisão do pleno do Supremo Tribunal Federal (STF) proferida em 16 de novembro de 2000 durante o julgamento do Recurso Extraordinário nº 220.906 do Distrito Federal. Vencidos os ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Ilmar Galvão, o Supremo entendeu que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) não poderia ter seus bens penhorados em uma reclamação trabalhista. E assim o fez porque o Supremo recepcionou o artigo 12 do Decreto-lei nº 509, de 1969, que estabelece que a ECT gozará, dentre outros benefícios, "dos privilégios concedidos à Fazenda pública, quer em relação à imunidade tributária, direta ou indireta, impenhorabilidade de seus bens, rendas e serviços, quer no concernente a foro, prazos e custas processuais". O Supremo também levou em consideração o fato de a ECT exercer uma atividade que até hoje é considerada monopólio estatal, além de o seu capital ser detido integralmente pela União.
Tentando fazer uso dessa decisão, recentemente uma sociedade de economia mista e uma fundação pretenderam valer-se do privilégio da impenhorabilidade de seus bens. No caso da sociedade de economia mista, o ministro Marco Aurélio consignou , no julgamento do Recurso Extraordinário nº 531.538, de Alagoas, que "a recorrente é pessoa jurídica de direito privado, pouco importando o fato de prestar serviços essenciais mediante monopólio. O capital compõe-se de recursos de particulares e de pessoas jurídicas". E, ao fim, concluiu que "é passo demasiadamente largo incluir-se sociedade de economia mista na referência à Fazenda constante do artigo 100 da Carta da República (...) Rege a espécie o artigo 173 da lei fundamental, a revelar, ante a integração da sociedade de economia mista no campo econômico, a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações cíveis, comerciais, trabalhistas e tributárias".
Quanto ao pleito formulado por uma fundação vinculada ao Estado do Rio Grande do Sul, a ministra Ellen Gracie afirmou, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 219.900, que "a recorrente é pessoa jurídica de direito privado, não possuindo qualquer privilégio processual na execução em que seja devedora, não se aplicando, ao caso, o artigo 100, caput, da lei fundamental".
Também o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui vasta jurisprudência sobre o tema, de que se tem como exemplos os recursos especiais de números 813.622 (Rio de Janeiro) e 521.047, 343.968 e 176.078 (São Paulo). O exame desses casos revela circunstâncias que não se comparam ao caso da ECT. Os entes envolvidos não exercem uma atividade econômica monopolizada como a ECT; ao revés, concorrem com outras empresas em seus respectivos nichos de atuação, e visam ao lucro em seu mister. Além disso, tanto a empresa pública como a sociedade de economia mista citadas se submetem ao artigo 173, parágrafo 1º, inciso II da Constituição Federal, que prevê a sua sujeição "ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias". Esses entes, quando credores, não têm para si a prerrogativa de proporem execução fiscal - prevista na Lei nº 6.830 de 1980 - justamente porque não integram o conceito de Fazenda pública.
Há outro argumento que desmerece a tese de equiparação do benefício concedido à ECT, relativo à impossibilidade de aplicação prática do regime do precatório. O artigo 100, parágrafo 1º da Constituição Federal estabelece a obrigatoriedade de inclusão, "no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários". Admitindo-se que as sociedades de economia mista, as empresas e fundações possam valer-se do pagamento de suas dívidas por intermédio do precatório - mesmo quando sabidamente não se enquadrem no conceito de entidades de direito público -, não há orçamento que as obrigue a atender ao pagamento de suas dívidas, justamente por sua natureza de pessoa jurídica de direito privado.
Ressalve-se que toda a argumentação desenvolvida se aplica aos casos em que a penhora de bens, rendas e serviços de tais entes não inviabilize a consecução dos seus serviços, como corolário do princípio da continuidade do serviço público. Em contrapartida, não se pode tolerar o uso indiscriminado desse argumento, como se toda penhora pudesse afetar a própria função social de tais entes, mormente nos casos em que os seus balanços já possuem registrados, contabilizados e provisionados os valores devidos.
Em conclusão: os tribunais têm prestigiado as recentes reformas que pretenderam a solução dos processos em prazo razoável. Mas, sobretudo, têm os tribunais contribuído para afastar a utilização de expedientes que frustrem a satisfação do crédito pelo devedor integrante da administração indireta, distribuindo segurança jurídica a todos quantos mantenham negócios ou sejam credores de tais entes.
Péricles d'Avila Mendes Neto é advogado associado da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados